Há uns 50 anos, meu saudoso
pai contava aos filhos um caso
acontecido com o também saudoso presbítero Alberto da Costa da 1a. Igreja
Presbiteriana Independente de São Paulo. Não me lembro das minúcias, mas na
essência a história era assim: Fizera ele uma compra no comércio em três
pagamentos de 230 cruzeiros e dez centavos. Quitou a entrada e, trinta dias
depois, pontualmente, pagou a primeira promissória. Ao se completarem sessenta
dias, “seu” Costa foi pessoalmente à loja e pôs 230 cruzeiros em dinheiro sobre
o balcão. Procurou nos bolsos uma moeda. Não a encontrando, deu ao comerciante
uma nota de dez cruzeiros para que ele cobrasse os centavos.
- Imagine, “seu” Costa, trocar dez para tirar dez
centavos ? O senhor me deve dez centavos e eu rasgo a promissória agora mesmo.
No dia seguinte, Alberto da Costa voltou à loja e deu a
moeda.
- Não acredito, disse o negociante. O senhor se abalar
para vir até aqui por causa de uma quantia tão irrisória?
- Vim porque o sr. me disse que eu lhe devia os dez
centavos e o crente nunca fica devendo nada a ninguém.
Bem, esta história bonita hoje é romântica, platônica, impossível de se repetir.
No momento atual, no Brasil, todos devem a todos. Por
isso, torna-se aflitivo para os cristãos, que concordam que não se deve dever, que foram criados
ouvindo o provérbio espanhol “Duerme sin cena y levantarás sin deuda”, verem-se
na contingência de terem dívidas, credores nas suas portas, cobranças chegando
de todos os lados.
Saiu na “Folha de São Paulo”, caderno “Dinheiro”, uma
história de alguém que depositou em poupança, há muitos anos, o valor da
entrada de um apartamento que pretendia comprar e o que lhe está creditado hoje são apenas
alguns centavos. Essas mágicas que assaltaram a todos nós, incluindo o famoso
roubo de cerca de 85% de tudo que tínhamos em poupança no último mês de
inflação alta, levaram inúmeros brasileiros à situação que agora vivem.
Pessoas que jamais deveram o que quer que seja, hoje não
vêm solução para seu endividamento : já cortaram todos os gastos, já dispuseram
de todas as suas economias, já venderam imóveis e estão “comendo tijolo,
desfazendo-se de bens que amealharam durante muitos e muitos anos. A
quebradeira na indústria e no comércio é inenarrável, o desemprego chega a dois
milhões de trabalhadores na Grande São
Paulo. Como pagar dívidas se se está desempregado? Até mesmo os parentes e amigos chegados,
solidários com a situação de angústia nos primeiros momentos, não podem, no
entanto, assumir a carga dos outros para sempre.
“O que não tem remédio, remediado está”, diz a sabedoria
popular. E porque não há remédio, os próprios cristãos viram para o lado e
dormem todas as noites porque se não fizerem isso, enlouquecem ou ficam sem
condições psicológicas de trabalho, o que só faria aumentar a bola de neve dos
compromissos assumidos.
E, como em todas as situações que vivemos, vamos voltar
os nossos olhos para a Escritura Sagrada, que é “lâmpada para os nossos pés e
luz para o nosso caminho” (Salmos: 119:105).
São
Mateus é o único evangelista que registra a parábola contada por Jesus do
credor incompassivo (18:23-35).
Um rei
ajustava contas com seus ministros e trouxeram-lhe um sátrapa, homem de
confiança, que lhe devia 10.000 talentos. Variam os cálculos entre os diversos
estudiosos sobre o valor dessa moeda, mas todos concordam que era uma quantia
vultosíssima, entre 6 e 10 milhões de dólares americanos atuais. Razão pela
qual, devemos admitir que se tratava de pessoa de muita confiança do soberano.
A leitura dos
jornais ultimamente nos informa de um sem-número de grandes empresários,
banqueiros, construtoras, donos de cadeias de lojas que faliram. Fecharam suas portas
irremediavelmente. A globalização tem muito a ver com isso. Hoje tudo é
massificado, não há mais lugar para o artesanato. A Prefeitura de São Paulo está na bancarrota.
Os movimentos populares vão a Brasília pedir a mudança na política econômica do
país. Os protestos tendem a aumentar. E isso porque muitas empresas não foram
liquidadas por corrupção ou desmandos administrativos. Profissionais
competentes, experientes e que trabalhavam arduamente tiveram que encerrar
atividades. Era o caso do sátrapa da parábola.
Ninguém
entregaria tão grande soma nas mãos de alguém que não tivesse um cadastro com
suficientes garantias. Ainda assim, provavelmente o grande homem de negócios
foi mal sucedido e, por certo, quanto maior a nau, maior a tempestade. Sua situação
era de inadimplência, daí ter ele que humilhar-se diante do credor.
“Prostrando-se, reverente, rogou : Sê paciente comigo e tudo te pagarei” (18:
26).
Disse, em
outras palavras, o que hoje estamos acostumados a ouvir :
- Devo, não
nego. Pagarei quando puder.
Assumiu,
portanto, a dívida e pediu um prazo maior para quitá-la. Hoje descrevemos isto
assim : Tentou negociar a dívida.
Por conhecê-lo
e julgá-lo um homem de bem, de caráter e, usando de misericórdia para com ele,
o governante o perdoou e considerou a dívida paga. Foi, pois, além do que o
servo lhe pedira. Não lhe deu mais tempo para o pagamento : anulou o
compromisso, não quis recebê-la, num gesto de grandeza memorável.
Prossegue a
narrativa, dizendo que, nem bem saíra da presença do rei, o perdoado encontrou
um seu empregado, que lhe devia uma quantia irrisória, cem denários, o que se
calcula hoje entre quinze e vinte dólares dos Estados Unidos. “Agarrando-o, o
sufocava, dizendo : Paga-me o que me deves” (verso 28). Caindo aos seus pés, o pobre
homem implorava, com as mesmas palavras que o credor usara diante do rei : “Sê
paciente comigo e te pagarei”. Ele, porém, o lançou na prisão até que saldasse
a dívida. Em outras palavras, foi incompassivo, não se compadeceu da
dificuldade do devedor.
Chegando a
notícia aos ouvidos do senhor do sátrapa, ele ficou muito indignado e, chamando
de volta o seu ministro, reverteu a decisão e mandou entregá-lo aos verdugos
até que lhe pagasse toda a dívida.
O ensino da
parábola é límpido, resumido pelo próprio Senhor Jesus deste modo : “Assim
também meu Pai celeste vos fará se não perdoardes cada um a seu irmão”.
Pedro
anteriormente lhe havia perguntado até quantas vezes se deveria perdoar a um
irmão que pecasse contra ele. Até sete vezes ?, ao que o Mestre lhe respondeu :
Até setenta vezes sete. O que, obviamente,
não significa quatrocentas e noventa vezes, mas infinitamente...
Interessante
que Pedro, ao perguntar usando o número sete e, tendo observado como Cristo era
misericordioso e perdoador, já elevou para sete um número que era, na cultura
dos judeus da época, de três ou, no máximo, quatro.
Era corrente
entre os rabinos o ensino de que se deveria perdoar uma pessoa até três vezes.
Um deles, por nome José Ben Hanina dizia : “O que roga a seu próximo que lhe
perdoe não deve fazê-lo mais de três vezes”. Por sua vez, o rabino José Ben
Jehuda ensinava : “Se alguém comete uma ofensa uma vez, é perdoado. Se a comete
pela segunda vez, é também perdoado. O mesmo acontece se a comete pela terceira
vez. Da quarta vez em diante, porém, não o perdoam mais”.
Baseavam-se no
Velho Testamento, onde se lê no profeta Amós :”Por três transgressões de
Damasco e por quatro, não sustarei o castigo” (I,3); “Por três transgressões de
Gaza e por quatro, não sustarei o castigo” (I,6); “Por três transgressões de
Tiro e por quatro, não sustarei o castigo”; e assim por diante : (verso 13 e
II,1, 4 e 6)
Jesus MUDOU
também este ensino anterior, quando, REPETIDAS VEZES ensinou o perdão, que é a
grande oferta do Cristianismo para toda a humanidade. Para salvar o ser humano,
Jesus PADECEU no Calvário e, com o seu sacrifício, adquiriu o direito de
perdoar. E é essa atitude de PERDÃO que ele traz para conosco e quer que nós o
imitemos em relação aos nossos semelhantes. Vejam-se, então os seus ensinos, de
uma clareza meridiana :
1.
Na oração do Pai Nosso : Perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos
os nossos devedores. Mateus : VI, 9-15.
(A Igreja Católica Romana, em sua versão atual dessa oração judaica, diz :
“Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido”)
Pode-se entender a palavra tanto como uma dívida de dinheiro como uma ofensa,
portanto as duas versões estão corretas.
2. No final da oração ele REFORÇA :
Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos
perdoará. Se, porém, não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará
as vossas ofensas (versos 14 e 15).
3. Nas bem-aventuranças :
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. Em outras
palavras : São felizes os compassivos, os que se compadecem, porque as pessoas
serão compassivas com eles.
4. A parábola do filho pródigo
mostra com clareza absoluta que o perdão do Pai é uma realidade. (Lucas 15,
22-24)
E S. Tiago vai pelo mesmo caminho (2,13) : O juízo é sem
misericórdia para com aquele que não
usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo.
Observemos mais
que um ponto de destaque da parábola é a COMPARAÇÃO entre as duas dívidas.
O ensino se
resume assim :
NO TERRENO DAS
DÍVIDAS, NADA QUE NOS FAÇAM PODE SER
COMPARADO COM O QUE FAZEMOS A DEUS.
As dívidas ou ofensas que podem nos fazer são
de dois tipos :
1. De dinheiro.
2. Ofensas de ordem moral;
difamações, falsos testemunhos, calúnias, injúrias.
Mas as nossas dívidas para com Deus
incluem um terceiro item, muito mais grave : a dívida ESPIRITUAL.
1. Sim, devemos dinheiro a Deus
: na forma de contribuições para a
manutenção e expansão do seu reino às vezes damos muito aquém de nossas reais
possibilidades. Costuma-se dizer que os cristãos dão dez por cento para suas Igrejas e é verdade : a maioria
costuma dar DEZ POR CENTO DO QUE DEVERIA DAR... E a nossa divida em dinheiro
para Deus se expande através da nossa indiferença para com os problemas do
próximo.
“Quem dá aos pobres empresta a Deus”
não é um provérbio popular, é um provérbio da Bíblia ! (19:17) E Jesus ensinou
: “Dá a quem te pedir e não te desvies de qualquer que te pedir que lhe
emprestes” (Mateus : V,42). E em Lucas : VI,34, a coisa não poderia ficar mais
clara: “Se emprestais aqueles de quem esperais receber, qual a vossa recompensa
? Também os pecadores emprestam aos pecadores para receberem outro tanto. Amai,
porém, os vossos inimigos e emprestai sem esperar nenhuma paga. Será grande o
vosso galardão e sereis filhos do Altíssimo. (...) Sede misericordiosos como
também é misericordioso vosso Pai”.
A propósito, QUEM DÁ DEPRESSA DÁ
DUAS VEZES.
E devemos ter a sensibilidade de
perceber quando alguém necessita de empréstimo e oferecer-lhe ANTES que ele nos
peça, para mostrar o nosso amor e evitar-lhe constrangimento e humilhação.
2. Ofendemos moralmente a Deus
quando não agimos segundo a sua lei moral.
Um patrão, que dá uma ordem ao seu
empregado não admite desobediência. Se numa empresa o presidente passa uma
determinação e seus empregados não tomam conhecimento, agindo cada um conforme
acha que deve agir, que papel faz o presidente ? E se um general determina que o coronel aja
de acordo com certa norma e este se recusa a agir conforme foi comandado. a que
papel se presta o general ? Ora, se Deus
nos deu uma lei moral e nós agimos conforme nossa maneira de pensar, que papel estamos fazendo que o Senhor
desempenhe ?
Seja, pois, a nossa oração a do
poeta sacro que escreveu o belíssimo hino do “Salmos e Hinos” FINDA-SE ESTE DIA
QUE MEU PAI ME DEU :
- Com os pecados de hoje eu te
entristeci. mas perdão te peço por amor de Ti.
3. A mais importante das nossas
dívidas com Deus é de ordem ESPIRITUAL. Primeiro, porque já nascemos em pecado
(Salmo 51,5). Segundo, porque “o salário do pecado é a morte” (Romanos 6,23). E terceiro, porque somos nós os responsáveis pela morte de Cristo na
cruz. Quem deveria estar naquela cruz não era, por certo, o filho de Deus, três
vezes santo. Não era aquele varão perfeito, puro e bom, mas cada um de nós,
porque a dívida era NOSSA !
Ele porém, morreu em nosso lugar :
fez o sacrifício VICÁRIO. E nos deixou o ensino de que se não perdoarmos, como
ele perdoou e, DE GRAÇA nos salvou, não seremos, também, alvos de sua
misericórdia.
Calcula-se que a dívida do conservo
do sátrapa era de um seiscentos mil avos do valor da dívida deste para com o
rei.
A comparação da maior das dívidas
que possam ter para conosco em relação ao que devemos a Deus é incalculável.
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Notemos, finalmente que Deus é Pai,
mas não é indulgente para com o nosso pecado. “O pai que ama o filho não lhe
poupa a vara” é ensino dos PROVÉRBIOS (XXIII,13).
Ele conhece as nossas dificuldades e
“a um coração quebrantado e contrito Deus não desprezará” (Salmos : LI,17).
Deus está sempre pronto a perdoar, mas ele não pode entrar num coração que não
esteja também disposto a perdoar.
Há, certamente, devedores cínicos,
maus caracteres, que ficam devendo dolosamente, de caso pensado. Não conhecemos
gente que almoça em restaurante de outra cidade que paga com cheque e ao chegar
no seu local de origem manda o banco sustar o cheque ? Não sabemos de quem aluga um imóvel já com
deliberado propósito de não pagar aluguer ? Não lemos sobre “golpes na praça”
de quem toma dinheiro para aplicar já pensando em usar esse dinheiro para si
próprio ? Não se pode, com certeza, usar
de misericórdia para com quem não tem qualquer misericórdia daquele a quem
cinicamente, friamente prejudica.
Existem, no entanto, no Brasil de hoje, inúmeros casos de
pessoas de bem, que se endividaram pelas circunstâncias políticas e econômicas
do nosso tempo e, quanto estiver em nós, devemos nos lembrar dos preciosos
ensinos da Bíblia, que nos levam a uma compreensão, à misericórdia e ao perdão
aos que nos devem.
Sermão pregado na Igreja Cristã Reformada em 12 de setembro de 1999. Texto editado por Paulo Roberto Pedrozo Rocha para esta publicação.