domingo, 2 de junho de 2013

Felizes os Misericordiosos!

Há uns 50 anos, meu saudoso pai contava  aos filhos um caso acontecido com o também saudoso presbítero Alberto da Costa da 1a. Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo. Não me lembro das minúcias, mas na essência a história era assim: Fizera ele uma compra no comércio em três pagamentos de 230 cruzeiros e dez centavos. Quitou a entrada e, trinta dias depois, pontualmente, pagou a primeira promissória. Ao se completarem sessenta dias, “seu” Costa foi pessoalmente à loja e pôs 230 cruzeiros em dinheiro sobre o balcão. Procurou nos bolsos uma moeda. Não a encontrando, deu ao comerciante uma nota de dez cruzeiros para que ele cobrasse os centavos.

- Imagine, “seu” Costa, trocar dez para tirar dez centavos ? O senhor me deve dez centavos e eu rasgo a promissória agora mesmo.

No dia seguinte, Alberto da Costa voltou à loja e deu a moeda.

- Não acredito, disse o negociante. O senhor se abalar para vir até aqui por causa de uma quantia tão irrisória?

- Vim porque o sr. me disse que eu lhe devia os dez centavos e o crente nunca fica devendo nada a ninguém.

Bem, esta história bonita hoje é romântica,  platônica, impossível de se repetir.

No momento atual, no Brasil, todos devem a todos. Por isso, torna-se aflitivo para os cristãos, que concordam que não se deve dever, que foram criados ouvindo o provérbio espanhol “Duerme sin cena y levantarás sin deuda”, verem-se na contingência de terem dívidas, credores nas suas portas, cobranças chegando de todos os lados.

Saiu na “Folha de São Paulo”, caderno “Dinheiro”, uma história de alguém que depositou em poupança, há muitos anos, o valor da entrada de um apartamento que pretendia comprar e o que lhe está creditado hoje são apenas alguns centavos. Essas mágicas que assaltaram a todos nós, incluindo o famoso roubo de cerca de 85% de tudo que tínhamos em poupança no último mês de inflação alta, levaram inúmeros brasileiros à situação que agora vivem.

Pessoas que jamais deveram o que quer que seja, hoje não vêm solução para seu endividamento : já cortaram todos os gastos, já dispuseram de todas as suas economias, já venderam imóveis e estão “comendo tijolo, desfazendo-se de bens que amealharam durante muitos e muitos anos. A quebradeira na indústria e no comércio é inenarrável, o desemprego chega a dois milhões de trabalhadores na Grande São Paulo. Como pagar dívidas se se está desempregado?  Até mesmo os parentes e amigos chegados, solidários com a situação de angústia nos primeiros momentos, não podem, no entanto, assumir a carga dos outros para sempre.

“O que não tem remédio, remediado está”, diz a sabedoria popular. E porque não há remédio, os próprios cristãos viram para o lado e dormem todas as noites porque se não fizerem isso, enlouquecem ou ficam sem condições psicológicas de trabalho, o que só faria aumentar a bola de neve dos compromissos assumidos.

E, como em todas as situações que vivemos, vamos voltar os nossos olhos para a Escritura Sagrada, que é “lâmpada para os nossos pés e luz para o nosso caminho” (Salmos: 119:105).

São Mateus é o único evangelista que registra a parábola contada por Jesus do credor incompassivo (18:23-35).
Um rei ajustava contas com seus ministros e trouxeram-lhe um sátrapa, homem de confiança, que lhe devia 10.000 talentos. Variam os cálculos entre os diversos estudiosos sobre o valor dessa moeda, mas todos concordam que era uma quantia vultosíssima, entre 6 e 10 milhões de dólares americanos atuais. Razão pela qual, devemos admitir que se tratava de pessoa de muita confiança do soberano.
A leitura dos jornais ultimamente nos informa de um sem-número de grandes empresários, banqueiros, construtoras, donos de cadeias de lojas que faliram. Fecharam suas portas irremediavelmente. A globalização tem muito a ver com isso. Hoje tudo é massificado, não há mais lugar para o artesanato.  A Prefeitura de São Paulo está na bancarrota. Os movimentos populares vão a Brasília pedir a mudança na política econômica do país. Os protestos tendem a aumentar. E isso porque muitas empresas não foram liquidadas por corrupção ou desmandos administrativos. Profissionais competentes, experientes e que trabalhavam arduamente tiveram que encerrar atividades. Era o caso do sátrapa da parábola.
Ninguém entregaria tão grande soma nas mãos de alguém que não tivesse um cadastro com suficientes garantias. Ainda assim, provavelmente o grande homem de negócios foi mal sucedido e, por certo, quanto maior a nau, maior a tempestade. Sua situação era de inadimplência, daí ter ele que humilhar-se diante do credor. “Prostrando-se, reverente, rogou : Sê paciente comigo e tudo te pagarei” (18: 26).
Disse, em outras palavras, o que hoje estamos acostumados a ouvir :
- Devo, não nego. Pagarei quando puder.
Assumiu, portanto, a dívida e pediu um prazo maior para quitá-la. Hoje descrevemos isto assim : Tentou negociar a dívida.
Por conhecê-lo e julgá-lo um homem de bem, de caráter e, usando de misericórdia para com ele, o governante o perdoou e considerou a dívida paga. Foi, pois, além do que o servo lhe pedira. Não lhe deu mais tempo para o pagamento : anulou o compromisso, não quis recebê-la, num gesto de grandeza memorável.
Prossegue a narrativa, dizendo que, nem bem saíra da presença do rei, o perdoado encontrou um seu empregado, que lhe devia uma quantia irrisória, cem denários, o que se calcula hoje entre quinze e vinte dólares dos Estados Unidos. “Agarrando-o, o sufocava, dizendo : Paga-me o que me deves” (verso 28). Caindo aos seus pés, o pobre homem implorava, com as mesmas palavras que o credor usara diante do rei : “Sê paciente comigo e te pagarei”. Ele, porém, o lançou na prisão até que saldasse a dívida. Em outras palavras, foi incompassivo, não se compadeceu da dificuldade do devedor.
Chegando a notícia aos ouvidos do senhor do sátrapa, ele ficou muito indignado e, chamando de volta o seu ministro, reverteu a decisão e mandou entregá-lo aos verdugos até que lhe pagasse toda a dívida.
O ensino da parábola é límpido, resumido pelo próprio Senhor Jesus deste modo : “Assim também meu Pai celeste vos fará se não perdoardes cada um a seu irmão”.
Pedro anteriormente lhe havia perguntado até quantas vezes se deveria perdoar a um irmão que pecasse contra ele. Até sete vezes ?, ao que o Mestre lhe respondeu : Até setenta vezes sete. O que, obviamente,  não significa quatrocentas e noventa vezes, mas infinitamente...
Interessante que Pedro, ao perguntar usando o número sete e, tendo observado como Cristo era misericordioso e perdoador, já elevou para sete um número que era, na cultura dos judeus da época, de três ou, no máximo, quatro.
Era corrente entre os rabinos o ensino de que se deveria perdoar uma pessoa até três vezes. Um deles, por nome José Ben Hanina dizia : “O que roga a seu próximo que lhe perdoe não deve fazê-lo mais de três vezes”. Por sua vez, o rabino José Ben Jehuda ensinava : “Se alguém comete uma ofensa uma vez, é perdoado. Se a comete pela segunda vez, é também perdoado. O mesmo acontece se a comete pela terceira vez. Da quarta vez em diante, porém, não o perdoam mais”.
Baseavam-se no Velho Testamento, onde se lê no profeta Amós :”Por três transgressões de Damasco e por quatro, não sustarei o castigo” (I,3); “Por três transgressões de Gaza e por quatro, não sustarei o castigo” (I,6); “Por três transgressões de Tiro e por quatro, não sustarei o castigo”; e assim por diante : (verso 13 e II,1, 4 e 6)
Jesus MUDOU também este ensino anterior, quando, REPETIDAS VEZES ensinou o perdão, que é a grande oferta do Cristianismo para toda a humanidade. Para salvar o ser humano, Jesus PADECEU no Calvário e, com o seu sacrifício, adquiriu o direito de perdoar. E é essa atitude de PERDÃO que ele traz para conosco e quer que nós o imitemos em relação aos nossos semelhantes. Vejam-se, então os seus ensinos, de uma clareza meridiana :

1. Na oração do Pai Nosso : Perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos os  nossos devedores. Mateus : VI, 9-15. (A Igreja Católica Romana, em sua versão atual dessa oração judaica, diz : “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido”) Pode-se entender a palavra tanto como uma dívida de dinheiro como uma ofensa, portanto as duas versões estão corretas.
2. No final da oração ele REFORÇA : Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará. Se, porém, não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas (versos 14 e 15).
3. Nas bem-aventuranças : Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. Em outras palavras : São felizes os compassivos, os que se compadecem, porque as pessoas serão compassivas com eles.
4. A parábola do filho pródigo mostra com clareza absoluta que o perdão do Pai é uma realidade. (Lucas 15, 22-24)
E S. Tiago vai pelo mesmo caminho (2,13) : O juízo é sem misericórdia para  com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo.
Observemos mais que um ponto de destaque da parábola é a COMPARAÇÃO entre as duas dívidas.
O ensino se resume assim :
NO TERRENO DAS DÍVIDAS, NADA QUE NOS FAÇAM PODE SER COMPARADO COM O QUE FAZEMOS A DEUS.
             As dívidas ou ofensas que podem nos fazer são de dois tipos :
            1. De dinheiro.
            2. Ofensas de ordem moral; difamações, falsos testemunhos, calúnias, injúrias.
Mas as nossas dívidas para com Deus incluem um terceiro item, muito mais grave : a dívida ESPIRITUAL.
1. Sim, devemos dinheiro a Deus :  na forma de contribuições para a manutenção e expansão do seu reino às vezes damos muito aquém de nossas reais possibilidades. Costuma-se dizer que os cristãos dão dez por cento  para suas Igrejas e é verdade : a maioria costuma dar DEZ POR CENTO DO QUE DEVERIA DAR... E a nossa divida em dinheiro para Deus se expande através da nossa indiferença para com os problemas do próximo.
“Quem dá aos pobres empresta a Deus” não é um provérbio popular, é um provérbio da Bíblia ! (19:17) E Jesus ensinou : “Dá a quem te pedir e não te desvies de qualquer que te pedir que lhe emprestes” (Mateus : V,42). E em Lucas : VI,34, a coisa não poderia ficar mais clara: “Se emprestais aqueles de quem esperais receber, qual a vossa recompensa ? Também os pecadores emprestam aos pecadores para receberem outro tanto. Amai, porém, os vossos inimigos e emprestai sem esperar nenhuma paga. Será grande o vosso galardão e sereis filhos do Altíssimo. (...) Sede misericordiosos como também é misericordioso vosso Pai”.
A propósito, QUEM DÁ DEPRESSA DÁ DUAS VEZES.
E devemos ter a sensibilidade de perceber quando alguém necessita de empréstimo e oferecer-lhe ANTES que ele nos peça, para mostrar o nosso amor e evitar-lhe constrangimento e humilhação.
2. Ofendemos moralmente a Deus quando não agimos segundo a sua lei moral.
Um patrão, que dá uma ordem ao seu empregado não admite desobediência. Se numa empresa o presidente passa uma determinação e seus empregados não tomam conhecimento, agindo cada um conforme acha que deve agir, que papel faz o presidente ?  E se um general determina que o coronel aja de acordo com certa norma e este se recusa a agir conforme foi comandado. a que papel se presta o general ?  Ora, se Deus nos deu uma lei moral e nós agimos conforme nossa maneira de pensar,  que papel estamos fazendo que o Senhor desempenhe ?
Seja, pois, a nossa oração a do poeta sacro que escreveu o belíssimo hino do “Salmos e Hinos” FINDA-SE ESTE DIA QUE MEU PAI ME DEU :
- Com os pecados de hoje eu te entristeci. mas perdão te peço por amor de Ti.                                             
3. A mais importante das nossas dívidas com Deus é de ordem ESPIRITUAL. Primeiro, porque já nascemos em pecado (Salmo 51,5). Segundo, porque “o salário do pecado é a morte” (Romanos 6,23). E terceiro, porque somos nós os responsáveis pela morte de Cristo na cruz. Quem deveria estar naquela cruz não era, por certo, o filho de Deus, três vezes santo. Não era aquele varão perfeito, puro e bom, mas cada um de nós, porque a dívida era NOSSA !
Ele porém, morreu em nosso lugar : fez o sacrifício VICÁRIO. E nos deixou o ensino de que se não perdoarmos, como ele perdoou e, DE GRAÇA nos salvou, não seremos, também, alvos de sua misericórdia.
Calcula-se que a dívida do conservo do sátrapa era de um seiscentos mil avos do valor da dívida deste para com o rei.
A comparação da maior das dívidas que possam ter para conosco em relação ao que devemos a Deus é incalculável.
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Notemos, finalmente que Deus é Pai, mas não é indulgente para com o nosso pecado. “O pai que ama o filho não lhe poupa a vara” é ensino dos PROVÉRBIOS (XXIII,13).
Ele conhece as nossas dificuldades e “a um coração quebrantado e contrito Deus não desprezará” (Salmos : LI,17). Deus está sempre pronto a perdoar, mas ele não pode entrar num coração que não esteja também disposto a perdoar.
Há, certamente, devedores cínicos, maus caracteres, que ficam devendo dolosamente, de caso pensado. Não conhecemos gente que almoça em restaurante de outra cidade que paga com cheque e ao chegar no seu local de origem manda o banco sustar o cheque ?  Não sabemos de quem aluga um imóvel já com deliberado propósito de não pagar aluguer ? Não lemos sobre “golpes na praça” de quem toma dinheiro para aplicar já pensando em usar esse dinheiro para si próprio ?  Não se pode, com certeza, usar de misericórdia para com quem não tem qualquer misericórdia daquele a quem cinicamente, friamente prejudica.
            
Existem, no  entanto, no Brasil de hoje, inúmeros casos de pessoas de bem, que se endividaram pelas circunstâncias políticas e econômicas do nosso tempo e, quanto estiver em nós, devemos nos lembrar dos preciosos ensinos da Bíblia, que nos levam a uma compreensão, à misericórdia e ao perdão aos que nos devem.

Sermão pregado na Igreja Cristã Reformada em 12 de setembro de 1999. Texto editado por Paulo Roberto Pedrozo Rocha para esta publicação.