domingo, 25 de abril de 2010

Paulo Autran na primeira igreja de Curitiba

A propósito da revista REALIDADE, Flávio Rangel e Paulo Autran levaram ao teatro Guaíra a peça “Liberdade, liberdade”, uma das poucas que conseguira vencer a censura e, num sábado, fui vê-la. Após a apresentação, aplaudidíssima, fizeram um debate com o público e foi quando conheci Paulo Autran. Perguntei-lhe se, convidado, falaria à minha Igreja no dia seguinte.

- É claro que eu vou. Nunca fui a uma Igreja protestante.

Acompanhado do jornalista Luís Fernando Mercadante, da REALIDADE, eles fizeram agradável visita a mim e ao Rev. Sátilas no escritório da Igreja, durante a Escola Dominical. No encerramento, Paulo recitou o “Navio Negreiro” de Castro Alves e outras poesias do mesmo quilate e dissertou brevemente sobre a liberdade. Fiz uma prece em seu favor. Na reportagem de capa da edição seguinte, sobre o mais preeminente ator brasileiro, Mercadante mencionou a visita e publicou minha oração.

O culto da noite desse dia me reservava uma surpresa. Sempre havia menos crentes do que de manhã, mas, assim mesmo, o auditório tinha um bom número de pessoas. Ao entrar para dirigir o serviço religioso, o templo tinha meia dúzia de gatos pingados. Óbvio está que, “onde houver dois ou três reunidos em meu nome”, disse Jesus que estaria no meio deles, e o culto se realizou normalmente. A explicação para a ausência do povo é que era o último dia da peça em Curitiba e todo mundo foi ver o Paulo Autran.

Ficamos amigos a partir desse dia. Ele me convidou para almoçar com ele e o ilustre jornalista no Hotel Iguaçu (onde passei minha primeira noite de casado) na segunda-feira.

Dona Cidália não era prostituta. Estava prostituta.

A igreja publicava, todo domingo, um boletim impresso. Era meu costume, às quintas-feiras, deixar na tipografia os originais. Nas sextas, revisava tudo e, com essa rotina, passei a conhecer todos os funcionários da gráfica, entre os quais dona Cidália (nome fictício). Sempre cordial, ela me saudava quando me via. Era-lhe tarefa juntar folhas e dobrá-las.

Uma noite, após umas visitas no Hospital Evangélico, voltava à casa pastoral quando parei meu “pé-de-boi”, um Volkswagen “pelado” que estava pagando em 36 meses à Caixa Econômica, num semáforo, e tive grande surpresa. Naquela esquina, usando peruca, minissaia e blusa decotada, lá estava ninguém menos que dona Cidália. Senti que ficou chocada ao me ver.

Segui o rotineiro procedimento das quintas e sextas, sem jamais modificar minha atitude para com essa mulher, continuando a cumprimentá-la com a mesma cordialidade de sempre, como se jamais tivesse visto a cena da esquina. Tempos depois, no Hospital do Cajuru, a perna esquerda engessada após terrível acidente que depois mencionarei, recebi, entre as inúmeras visitas, uma muito especial. Certa tarde, dona Cidália veio me ver. A sós comigo, abriu seu coração. “Estou aqui por três motivos. Primeiro, vim ver como o senhor está. Vim também para lhe agradecer. O senhor nunca referiu a ninguém o que viu nem mudou seu modo de me tratar. E, em terceiro lugar, quero lhe  dizer que não tenho essa atividade como profissão. Vou à rua porque meu marido é bêbado e tenho três crianças. O salário da gráfica mal paga o nosso aluguel e fico desesperada de ver os meninos sem ter o que comer.”

A mulher da rua

Agravava a análise de muitos eu já ter pregado, no dia das mães, o sermão “A mulher da rua”, publicado no mesmo dia pelo O ESTADO DO PARANÁ, onde mantive, todos os domingos, a coluna “Momento ecumênico” e também o fato de haver analisado o homossexualismo em outra homilia. Eram temáticas das quais o púlpito protestante era viúvo. E não se diga que houvesse alguma obsessão de minha parte por assuntos que envolvessem sexo, eis que eu pregava três vezes por semana. Publiquei num dos boletins dominicais de 1966 uma relação dos assuntos abordados pelo púlpito, onde se pode ver o amplo leque das pautas, nas quais constavam sermões sobre os livros de Ester, Joel, Amós e Cântico dos Cânticos, entre outros pouco focalizados.

Óbvio está, portanto, que, longe de desejar algum sensacionalismo barato, minha preocupação era não fecharmos os olhos à realidade ao nosso redor. A prostituição é tema frequente na Bíblia. No segundo ano do pastorado vivi concretamente esta situação, que estimo válido registrar.

O "Sermão do amor livre" foi um Deus-nos-acuda

Meus sermões tinham firme embasamento nas Escrituras, conforme se pode ver nos esboços distribuídos todos os domingos e devidamente arquivados, feitos para que a Igreja pudesse acompanhá-los “pari-passu” e depois discuti-los numa assembleia informal. Não que eu não cometesse erros. Afinal era dono de vasta inexperiência, mal saído das fraldas do Seminário e sem ter cumprido o ano de licenciatura, hoje obrigatório. Preguei um sermão polêmico sobre “Relações pré-conjugais” em outubro de 1965, no domingo seguinte a uma reportagem de capa, sobre o mesmo tema, da revista REALIDADE, que ocupara o lugar de O CRUZEIRO como a maior revista nacional.

A atriz Ingrid Thulin, sueca, afirmava que tinha deixado a Igreja por esta ter gente muito atrasada. Ela defendia relações pré-matrimoniais, desde que houvesse amor. Expus à Igreja o conteúdo da matéria e, no final, deixei bem clara a posição do cristão nessa momentosa questão. Foi um deus-nos-acuda. Meses mais tarde, o saudoso Rev. Antônio de Godoy Sobrinho fez-me esta crítica inteligente e sensata: meu erro tinha sido não na apresentação da doutrina bíblica e sim na falta de ênfase sobre ela. “Você passou três-quartos do tempo falando sim e só uma quarta parte falando não. Ficou a impressão de que defendia o amor livre”.

sábado, 24 de abril de 2010

Uma longa ditadura de 21 anos

O golpe de estado militar, que derrubou o governo constitucional de Jango Goulart em 31 de março de 1964 e instalou a ditadura que iria durar 21 longos anos, estava há pouco tempo em vigor. A censura medrava de forma crescente e os radicalismos eram muito reais. Sermões sobre temas que hoje um seminarista prega com a maior naturalidade eram tidos como perigosos e marxistas. Fiz, a propósito, num domingo, um sermão intitulado “Verdades e erros do marxismo”.

Um dia, no Conselho, o vice-presidente, presbítero Dr. Fernandino Caldeira de Andrada, cujo neto, (filho de sua filha Mânia com o rev. Wesley Werner) batizei, propôs uma lista de assuntos que não deveriam ser abordados nas homilias! Ele, advogado, rasgava a constituição da Igreja, eis que o púlpito presbiteriano é de responsabilidade exclusiva do pastor, o único presbítero docente. Aos presbíteros regentes é vedado opinar ou imiscuir-se em assunto reservado aos ministros da palavra, devidamente preparados por seu bacharelado em teologia, entre tantas outras exigências. Era como se o pedreiro dissesse ao engenheiro o que fazer na obra. Isso para dar uma idéia do clima que se vivia.

Casamento








Maria e eu nos casamos na cidade catarinense outrora conhecida por Nossa Senhora das Lages. No civil, em primeiro de setembro, e na Igreja Presbiteriana local, no dia seguinte, em 1967. Foi celebrante o então reverendo João Daniel Migliorini, hoje presbítero, pessoa que tem lugar muito especial no meu coração. A recepção foi no Grande Hotel Lages. Foram nossos padrinhos no civil, o Renato e a Lila e, no religioso, tio Totó e tia Adair.

Curioso que, sendo eu o pastor da 1ª Igreja Presbiteriana Independente, no templo hoje tombado pelo Patrimônio Histórico de Curitiba, a duas quadras da Praça Tiradentes, era corrente a informação, no meio protestante local, que o novo pastor, vindo de São Paulo, era revolucionário. Isso equivalia a ser “subversivo”.

7 de Outubro de 1966 - 2 de Setembro de 1967

Era uma quarta-feira e eu estava pregando no culto de meio de semana. Ao terminar a pregação alguns líderes me aguardavam na sacristia, a ver se eu apoiaria a manifestação. Eis que já havia um sacerdote católico no local e queriam também um pastor protestante. Não hesitei um segundo e para lá me dirigi, sendo um dos oradores. Com muita determinação, lembrei a todos da esquecida promessa feita pelo ditador anterior, o cearense Humberto de Alencar Castello Branco, de que logo teríamos eleições, o que só ocorreu vinte anos mais tarde.

Nessa noite, do púlpito onde me encontrava, acompanhei, “pari passu”, todos os movimentos de uma moça linda, com um capuzinho vermelho, que não tirava os olhos de mim. Eu não via a hora de terminar tudo para chegar perto dela mas, que pena, desencontramos no meio da pequena multidão e o encontro só se daria 4 dias mais tarde, para não haver, mercê de Deus, mais desencontro.

Quando soube do acontecimento que levaria a Maria a romper seu noivado – fato que merece registro – o dr. Cleto se houve como um cavalheiro, respeitando a decisão dela com fineza impecável. Conheci-o seis anos depois, recém-casado, em Brasília e fomos recebidos na casa da Sílvia, minha cunhada, quando confirmei que se trata de pessoa finíssima, culta e muito agradável. Como dizia Blaise Pascal, “le coeur a ses raisons, que la raison-même ne compris pas”. (O coração tem razões que a própria razão não compreende).

A posse na "Ditadura da República"

Deus é grande. Depois de memorável festa na casa de uma amiga comum chamada Paula, de quem nunca mais tivemos notícia, no dia 7 de outubro, Maria e eu nos apaixonamos loucamente e esse é o dia oficial em que começamos a namorar. Ela fazia, na Universidade Federal do Paraná, os cursos de direito e de jornalismo. Ficamos noivos em Lages em 26 de março de 1967, abençoados pelo pastor Paulo Brasil, na casa dos pais dela, à Rua Correia Pinto, 372. O Paulo era um rapaz culto, pastor da Igreja Presbiteriana de Lages e um dia, para surpresa de muitos, saiu para tornar-se pentecostal, com igreja própria.

Em 3 de outubro de 1966 tomava posse na presidência da República ou, melhor dito, na Ditadura da República, o marechal Arthur da Costa e Silva, o primeiro de uma série de gaúchos que, rasgando a Constituição, subia ao poder legal, mas não legitimamente. Não tendo armas nem outro recurso, o povo brasileiro protestou com um sem-número de piadas em que ele fazia o papel de idiota. O movimento estudantil, que era organizado e fortíssimo, decidiu promover uma manifestação de protesto e seus líderes convocaram os universitários e secundaristas para um comício usando como tribuna as escadarias da Biblioteca Pública de Curitiba.

Na ocasião, o presidente da UNE – União Nacional dos Estudantes, era o senador José Serra, que foi ministro da saúde do atual governo do PSDB e se candidata à presidência da República. Quem o viu e quem o vê! A propósito, deixou em seu lugar um ex-aluno meu de inglês, Barjas Negri, que é de Piracicaba, onde hoje tenho duas escolas de inglês franqueadas. Outro aluno da Escola Lessa foi o atual ministro da justiça, Miguel Reale Jr.

Sem querer, o saudoso Rev. Elias Abrahão atrasou meus planos

Conheci a então MARIA HOESCHL MARQUES, natural de Lages, Santa Catarina, em junho de 1966, após um culto ecumênico realizado na Igreja católica de Santa Terezinha, que teve como pregador o erudito pastor presbiteriano Rev. Jorge César Mota, falecido no dia de natal de 2001. Fui apresentado a ela na casa de Paulo Menguê, também lageano, na Praça Osório, no centro, pelo saudoso Rev. Elias Abrahão, que por muitos e muitos anos foi pastor da Igreja Presbiteriana central da capital paranaense na Rua Comendador Araújo e faleceu tragicamente num acidente de automóvel na rodovia Paranaguá-Curitiba quando era deputado federal. Quando lhe perguntei quem era a Mariazinha, ele liquidou a conversa, dizendo: “É a namorada do meu melhor amigo”.

Isso atrasou muito a programação. Foi no mês seguinte, ao voltar de uma viagem a Recife, onde participou com o saudoso Dom Hélder Câmara, com universitários da União Cristã de Estudantes do Brasil, entre os quais o primo Paulo Cruz, Margarida Moura, Walter Soboll,  Diana Cunha e estudantes da Universidade americana de Cornell, de um simpósio em Ponte dos Carvalhos, que ela ficou noiva do médico presbiteriano lageano Cleto Anderson de Souza. Ele é cirurgião plástico. Estavam com seu casamento marcado para 17 de dezembro e tinham convidado para celebrá-lo o nosso grande amigo Rev. Éber Fernandes Férrer, hoje morando em Roma com a segunda esposa, a suíça Claudine. Sua primeira mulher, Vera, é de Campinas e mãe de seus dois filhos.

O Éber foi um dos que impôs as mãos sobre minha cabeça na ordenação ao ministério. Ele sempre foi muito grato aos meus tios Vicentinho e Aleth por o terem ajudado quando seminarista.

O iluminado João XXIII abriu as janelas do Vaticano

Lembrou-me que quando ele chegara à cidade que conhecemos como a “Antioquia da Sorocabana”, os padres queimavam bíblias em praça pública, ele mesmo sendo perseguido na obra de evangelização. Ponderei que, “mutatis, mutandis”, os protestantes fizeram o mesmo com os católicos dos Estados Unidos, organizando piquetes com “posters” e marchando, em círculos, ao redor dos templos católicos, chamando-os de hereges e perturbando-lhes o sossego.

Era um confronto natural pois nós, os jovens, nos deparávamos com uma Igreja Romana renovada pela mente iluminada do papa João XXIII, talvez o mais importante que já esteve na cátedra de Pedro, enquanto Azor Etz Rodrigues, Sherlock Nogueira, Severino Alves de Lima, Sebastião Gomes Moreira, Manoel Machado, Isaac Gonçálves do Vale e outros pastores excelentes, incluindo o extraordinário Eduardo Carlos Pereira de Magalhães, conviveram com um catolicismo retrógrado e unha-e-carne com o governo, a ponto de dizer-se que “ninguém governa o Brasil sem o apoio da Igreja Católica”. A propósito, quase que se pode afirmar hoje que ninguém governa o Brasil COM a Igreja Católica, eis que a Confederação Nacional dos Bispos vive se pronunciando contra os governos constituídos e a corrupção, em defesa dos direitos do cidadão.

Início na "Semana de oração pela unidade cristã"

Em 3 de novembro de 2001, dei início ao levantamento destes dados, sem a menor pretensão de que sejam completos.

Tudo começou em Curitiba, a “cidade sorriso”, quando o primeiro Centro Ecumênico foi organizado no Brasil, com sede no Colégio Nossa Senhora de Sion. Teve a participação de frades, freiras e pastores protestantes antes mesmo do Rio de Janeiro, que começou uns seis meses depois com frei Romeu Dale. Jether Ramalho, da Igreja Congregacional, Waldo César, da Igreja Presbiteriana, e outros mais. Do Centro pioneiro sou um dos fundadores, juntamente com os Revs. Éber Fernandes Férrer, Sátilas do Amaral Camargo, Antônio Jairo Porto Alegre, Richard Canfield, Elias Abrahão e Heinz Ehlert.

O Centro realizou a “Semana de Oração pela Unidade Cristã”. Era uma das suas primeiras atividades, com troca de púlpitos, o que me causaria muitos problemas eclesiásticos futuros pelo inusitado da prática. Numa reunião do Supremo Concílio, no Seminário, em que vim como representante do Presbitério Sul Paraná, “seu” Azor, o notável e maravilhoso pastor de Assis, chamou-me de lado e me perguntou como eu poderia por no púlpito da nossa Igreja um sacerdote católico.

"Toda unanimidade é burra", dizia Nélson Rodrigues

Certo está, pois, que outros membros da família e da Igreja, porventura aqui mencionados, verão, com olhos diferentes, vários episódios aqui narrados e a maneira como foram por mim interpretados, o que aceito com naturalidade. Peço, porém, a devida vênia, para apresentá-los segundo o meu modo de ver. São estas, pois, mais memórias de minha própria vida do que um álbum de família feito com rigores científicos.

Aqui se encontram fatos. Muitos fatos. Isso não quer dizer que OUTROS não tenham ocorrido com os mesmos personagens. Mais por desconhecimento meu do que por qualquer outro motivo, eles não estão aqui mencionados. É mistér, então, deixar isso assinalado, pois acontecimentos outros que aqui faltam poderão eventualmente dar um panorama mais exato das pessoas referidas.

Sou seu amigo, mas a verdade é minha amicíssima

Inevitável será o caráter de auto-biografia destes apontamentos. Não gostaria de chamá-los assim, porque, afinal, a biografia de si mesmo é, em geral, uma forma de se falar bem ou mal de outras pessoas... Mas não terá existido, quiçá, livro algum que não expressasse a ótica do seu autor. Espero, outrossim, não incorrer num erro a que a grande escritora Lygia Fagundes Telles se referiu numa entrevista à revista ISTOÉ de 24/4/2002. Não tendo jamais escrito sua auto-biografia nem cogitando fazê-lo, ela explicou : “Eu inventaria muito”.

Todo o empenho colocarei para ser fiel ao pensamento atribuído a Aristóteles, que memorizei em latim e procurei sempre por em prática: “AMICO PLATO, SED VERITAS, AMICISSIMA”. Sou amigo de Platão, mas muito mais amigo da verdade.

E se alcançar meu desejo de aqui só dizer a verdade, é mais do que certo que algumas pessoas não gostarão do que eventualmente lerem. Afinal, Albert Einstein já dizia : “Se você sair para dizer a verdade, deixe a elegância para o alfaiate”. Se o mundo odiou Jesus sem motivo, como relata São João, quem sou eu para que todos gostem de mim ? Quem não teve inimigos foi porque não pensou. Logo, segundo René Descartes, o maior filósofo francês de todos os tempos, não existiu...

Um Deus que não é de justiça, mas de amor e perdão

Oxalá esta história, minha e de nós todos, possa – longe de promover ressentimentos – contribuir para que melhor nos conheçamos, mais nos amemos e gratos mais sejamos ao nosso Deus e Pai que nos entrelaçou com tanta gente boa, de quem nos orgulhamos de ser parentes.

Aqueles que porventura tropeçaram e tiveram atitudes menos dignas, são justamente os que maior amor merecem. Não fez assim o pai do filho pródigo? O Pai nosso, muito mais que um pai justo, é um pai de amor e de perdão. Assim, sem deixarmos de reconhecer nossos erros, devemos lembrar que no próprio Satanás, o príncipe deste mundo, encarnação do mal, há uma grande virtude: a perseverança. E todos têm seu lado bom.

O julgamento pertence ao Senhor, que é o justo Juiz. Num balanço geral, entretanto, é forçoso render graças ao Altíssimo por homens e mulheres, ligados por laços de sangue nesta família, “dos quais o mundo não é digno”, como escreveu o autor da epístola aos Hebreus.

No roseiral da vida existem rosas e espinhos

Num trabalho desta natureza, abrangendo tantas pessoas e cerca de dois séculos, é natural que, entre elas, tenham ocorrido alguns episódios desagradáveis, rupturas traumáticas, sofrimentos bem grandes. Para alguns, o simples registrar de tais acontecimentos pode trazer amargura e até lágrimas. Poderiam pedir-me que os omitisse, para não desenterrar as tristezas de relacionamentos rompidos. São, no entanto, páginas reais e, querendo nós ou não, fazem parte da história.

Ao registrá-los – e o farei com a discrição possível – peço a compreensão de todos. Usarei o critério da Bíblia, para muitos de nós a Palavra de Deus revelada, em relação ao seu povo e à sua igreja: ela conta o caso como foi e não como deveria ter sido. Assim é que vemos o grande Davi, ascendente direto de Jesus, em altos píncaros espirituais, escrevendo o Salmo 23 e cometendo terrível assassinato ao mandar que deixassem o general Urias morrer para ficar com a mulher dele, Betsabá. Na genealogia do próprio Senhor Jesus está registrado que havia quatro mulheres pecadoras, uma delas Raabe, a meretriz.

Assim é a vida. Ao contemplar um roseiral, erra o pessimista, que só vê nele espinhos, e erra o otimista, que só enxerga as rosas. No roseiral da vida há rosas e espinhos e é vendo os dois que contemplamos a realidade.

"Semana Evangélica" e "O Estandarte", órgãos oficiais da IPI

Deixou-nos ainda uma biografia do primeiro padre católico convertido ao protestantismo intitulada “O padre José Manuel da Conceição” (1937), “As guerras hussitas” e “Ecos da Boêmia” (Rio de Janeiro, 1919), onde trata das biografias de João Huss e Jerônimo, de Praga. Incontáveis artigos seus figuram nas páginas de "O Estandarte" e da “Semana Evangélica”, esta que foi órgão oficial da Igreja Presbiteriana Independente nos anos vinte, além de preciosos folhetos, muitos deles reunidos numa coleção sob o título “Opúsculos”. Um desses biografa a esposa Henriqueta.

Na “Revista de Cultura Religiosa”, gerenciada pelo tio Vicentinho, preciosíssimo arquivo do que havia de melhor no protestantismo (1923-1926), o vovô fez um levantamento das publicações evangélicas do país. Possuía imensa coleção de folhetos das diversas denominações que, encadernada, foi doada pelo papai ao Museu da Igreja Presbiteriana Independente. Numa das edições de “O Som do Evangelho”, boletim que publiquei de 1978 a 1979, levantei também o nome das publicações da época, em trabalho sucinto, em nada comparável ao alentado rol do vovô.

Por um desses caprichos do destino, registro que tia Lotte, quando mocinha, foi aluna do vovô Vicente no Instituto “José Manuel da Conceição” em Jandira, SP. Jamais imaginaria ela que viria a ser tia de um neto dele.

O travesseirinho de terra pernambucana

O vovô Vicente nasceu em Palmares e amava tanto Pernambuco que, ao vir para o sul, trouxe um torrão de terra de lá, para que, quando morresse, lhe servisse de travesseiro. Os filhos lhe fizeram a vontade e ele baixou à sepultura descansando a cabeça em sua própria terra. Pertenceu aos Institutos Históricos de seu estado natal, de São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo, Paraíba, Ceará, Sergipe e Alagoas.

São de sua autoria, entre outros livros, uma alentada biografia de Lutero e “Calvino, sua vida e sua obra”, narrando sobre o fundador do presbiterianismo que, aos 26 anos, escreveu, em latim, as “Institutas” da Religião Cristã, uma das quatro mais importantes obras sobre o cristianismo nestes 2002 anos. “Maurício de Nassau, o brasileiro” é outro livro magnífico, analisando a segunda tentativa de implantação do protestantismo no Brasil à época das invasões holandesas em Olinda e outras plagas pernambucanas no século 17.

[Obs: Plaga - s.f. País, região.]

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Álbum de família e outras memórias

(ATUALIZADO ATÉ 1 DE JULHO DE 2002)

“O que ouvimos e aprendemos,
o que nos contaram nossos pais,
não o encobriremos a seus filhos.
Contaremos à vindoura geração
os louvores do Senhor e o Seu
poder e as maravilhas que fez”.


Salmos : LXXVIII, 3,4

Em 1997 minha tia Lieselotte Hoeschl Ornellas escreveu “Meu Caleidoscópio”, uma história de Leopoldo Francisco Hoeschl (nascido na Galícia, província do império austro-húngaro em 28-10-1850) e seus descendentes. Trabalho precioso, com cerca de 150 páginas, em que coletou dados, reproduziu fotos notáveis e fez comentários sobre inúmeros familiares desse patriarca. É uma pesquisa de inestimável valor e que presta e prestará formidável serviço a todos nós, que somos personagens desse livro histórico.

Neto que sou do vovô Vicente, o primeiro nascido depois do seu falecimento e de quem herdei o nome abençoado, lembro que ele foi historiador de grande talento, não só da família dele como de toda a família presbiteriana do Brasil, com seus “Anais da 1ª Igreja Presbiteriana de São Paulo” (1938), alentada obra de 720 páginas, de consulta obrigatória. Em “Episódios e Perfis” conta ele, por exemplo, sobre o Capitão Themudo, de Pernambuco, cujo nome era um particípio passado arcaico de “temido”. Tenho nele um exemplo para, pelo menos, tentar guardar informações históricas sobre a família que constituí.